sábado, 27 de novembro de 2010

Comecei a desenhar as pessoas de dentro para fora sem esquecer a cor dos olhos nem a forma do coração

Uma vez experimentei um lápis novo que toda a gente dizia que era mágico, era cinzento por fora mas pintava todas as cores, nunca acreditei que fosse realmente mágico, mas chamei magia ao que ele fez.
Desenhei com ele o sonho que tive. Sonhei pessoas e quando as desenhei esqueci.me de esboçar corações e de colorir os olhos. Desenhei pessoas que saíram do risco mesmo quando as pintei sempre para o mesmo lado.
Os rascunhos que faço de pessoas saem sempre ao lado e por incrível que pareça tornam.se cada vez mais gatafunhos que desenhos de pessoas. Tenho que começar a desenhá.las de dentro para fora, ficam muito mais trabalhadas no interior e o que fica à mostra é só um traço picotado por completar.
Afiei o lápis e comecei o mesmo desenho numa folha branca. Pensei que o erro tinha sido meu por não ter desenhado as pessoas num qualquer espaço, num qualquer dia. Então circundei um Sol a amarelo torrado com reflexos a vermelho que nascia de uns montes verdes e redondos, fiz riscos azuis para ter um rio e comecei a desenhar as pessoas de dentro para fora sem esquecer a cor dos olhos nem a forma do coração.
Ouvi muito tempo o som do lápis sobre a folha. [não era melódico mas acreditei que poderia tornar.se música]
Pensei que aquando acabasse, e por toda a gente dizer que o lápis era mágico, o meu desenho saísse da folha. Quando acabei senti que alguém já tinha desenhado aquelas pessoas... Possivelmente o lápis mágico tinha sido já de alguém que também desenhou pessoas em lugares como os meus e com as mesmas cores. Ou então, eu não sei desenhar e por isso é que os meus desenhos nunca saem da tela.
Devia desenhar gatinhos gordos e felizes, esses nunca falham mesmo com lápis preto, mesmo borratados. Deixam-me sempre com um ar feliz porque são desenhos sem qualquer efeito especial de um lápis mágico, são sempre meus mesmo quando não chegam à tela e ficam apenas na intenção de ser desenho.


26 e 27 de Novembro, 2010

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

"um minuto pode demorar muito tempo" *

Caem pingos de chuva na janela do meu quarto e a luz que chega até mim é cinzenta.
Não tenho relógio na mesinha porque desisti do tempo. Do tempo que não é mais que um minuto.
[Ás vezes chove do lado de fora da janela e eu sinto que é cá dentro.]
Hoje era um bom dia para desenhar sonhos na areia. As ondas não teriam coragem de vir e levá.los com elas. Sempre que os desenho não duram um minuto, e por isso desisti.
Aquela luz cinzenta não me deixa ver as cores que tenho aqui. Ainda me lembro daquele Verão não muito longe em que combinei com as cores do arco.íris que tinha desenhado. Lembro.me, porque raramente conseguimos desenhar.nos...
Desarrumei a primeira gaveta só para ter que a organizar de novo, alinhar cores e formas, deitar mais rabiscos perdidos fora e fechá.la outra vez. [Não percebo como fica desarrumada se raramente a abro] Deve ser do vento, existem ventos especiais que correm nos armários e gavetas, é isso.

O meu minuto aqui é eterno. Vejo todos os retratos a descer em câmara lenta pela parede do quarto, como se todas as pessoas que neles aparecem quisessem contar.me de que cor fica o Sol lá fora quando chove, mas nem todas param um minuto. E no impasse de os lábios se mexerem o som vai com elas. Não lhes consigo pedir que repitam porque deixo logo de as ver. Ficam pessoas anónimas de sons e aparência. E o efeito camara lenta não é lento o suficiente.
É raro alguém querer que a camera lenta seja ainda mais lenta, mas eu quero anular o movimento para ver cores, atenciosamente, e sóis perdidos do céu azul. Ver a cor que a chuva tem sem querer ,pela única vez, que ela pare. Ter saudades do quente..
Nunca chove àgua quente e às cores. Quero desenhar na areia uma chuva quente com cromatismos que façam brilhar os olhos. É esse o meu desejo de hoje.

12 de Nov. 2010
* "une minute de silence peut prende un certain temps" in movie Bande à Part. Godard